Um mundo de fronteira consolidando a educação popular


UM MUNDO DE FRONTEIRA CONSOLIDANDO A EDUCAÇÃO POPULAR                                                                                 
                                                          Maria da Graça Souza
                                                          Secretaria Municipal de Educação de Jaguarão-SME                                                                              
                                                          mdgsouza@gmail.com

Resumo: Este trabalho se propõe resgatar a construção coletiva, proposto e estimulado pela Secretaria de Educação de Jaguarão, de um movimento de participação popular que busca sustentar, com o resgate das práticas pedagógicas, o desenvolvimento de diferentes linguagens  enraizadas na vida de um povo de fronteira que realiza uma síntese cultural que procura e pode dar conta das “situações limites” vividas por esses viventes.      
Palavras Chaves: Participação Popular, Método Dialógico Freireano, Currículo Enraizado.

Jaguarão situa-se na parte meridional do Estado, na fronteira com a cidade de Rio Branco no Uruguai, às margens do Rio que lhe deu nome. A cidade mantém os vestígios arquitetônicos de fases importantes de sua formação e desenvolvimento, tendo o IPHAN feito seu tombamento. As condições de fronteira e das políticas externas acarretam oscilações muito grandes nas atividades econômicas, e nas que se lhe subordinam, como a demografia. As políticas distantes, entretanto, ao se aliar com o protagonismo de seus habitantes, resulta numa síntese cultural peculiar. Disso resulta uma sociedade singular no contexto tanto do Estado como do País, com relações históricas peculiares e problemas específicos e de grande envergadura tanto relacionados às condições de urbanização quanto de acesso aos bens mais elementares como saúde, água, esgoto e educação.
O conjunto da administração popular atual, do professor Cláudio Martins, não é neutra, evidentemente, na medida que há grandes ações e projetos voltados para aqueles e aquelas às quais a historiografia negou assento e voz, mas procura realizar políticas para o conjunto da sociedade, sem restringi-las aos que vivem bem.
O assumir a Secretaria de Educação, em 2009, com um projeto popular de educação, nos exigiu uma apropriação desta peculiaridade de modo que nos livrasse dos argumentos manhosos e deterministas atribuídos aos trabalhadores em geral, tais como: o povo é preguiçoso; o povo é inculto, e que recorrentemente eram empregados para justificar ações assistencialistas e políticas restritivas ao invés de propor projetos políticos de transformação da realidade.
Todos os nossos esforços têm sido para consolidar uma escola pública e popular. Nosso Projeto Pedagógico tem sido elaborado no sentido de garantir aos meninos e meninas populares o direito de conhecer, de estudar o conhecimento acumulado pela humanidade, de realizar uma formação dignamente humana, sem negar aos filhos de famílias mais abastadas as condições de se desenvolver. A referência de base de nossa equipe é a constituinte escolar do Rio Grande do Sul, anos 1999 a 2002 e a radicalidade teórica sustentada na concepção freireana de educação e cultura.
Propor uma ação pedagógica desta envergadura exige reformulação curricular com consequências de impacto para incorporar o conjunto das crianças à escola pública.  Essas demandas são bem colocadas por Freire à época de sua experiência na Secretaria de São Paulo:
“É preciso deixar claro, porém, que a escola que queremos não pretende, de um lado, fazer injustiça às crianças das classes chamadas favorecidas, nem, de outro lado, em nome da defesa das populares, negar a elas o direito de conhecer, de estudar o que as outras estudam por ser “burguês”. A criação, contudo, de uma escola assim, impõe a reformulação do seu currículo, tomado este conceito na sua compreensão mais ampla. Sem essa reformulação curricular não poderemos ter a escola pública municipal que queremos: séria, competente, justa, alegre, curiosa. Escola que vá virando o espaço em que a criança, popular ou não, tenha condições de aprender e de criar, de arriscar-se, de perguntar, de crescer.” (FREIRE, 1991, p. 42)
Propomos um caminho de mudança através da Constituinte Escolar, pois costumo afirmar que democratizar a escola exige despir-se do autoritarismo, ter autoridade para sair do gabinete e construir junto, com a certeza que a mudança nas práticas pedagógicas não pode nascer da cabeça de um Secretário que se pensa iluminado, ou através de receitas prontas. Ao contrário, deve brotar de avaliações coletivas onde a comunidade escolar é chamada para que aponte o que é mesmo que se ensina na escola e discuta o que deveria se ensinar na perspectiva de pensar a construção de um currículo e uma escola popular enraizados nas relações históricas deste povo de fronteira.
A escola deve partir do saber de classe, saber de “experiência feito”, de conhecimentos que a meninada traz para a escola, mesmo fora dos padrões cientificos. Em função dos seus níveis de idade, as crianças têm direito a informação e formação dos avanços da ciência. Tendo como ponto de partida o saber de experiência feito, entretanto, e como orientação para a construção do conhecimento as referências trazidas da própria comunidade ou do conhecimento acumulado: essa é a tensão que marca a construção curricular na escola popular pública. Se esse movimento exige desconstrução de práticas algo dogmatizadas e atenção aos movimentos postos pela própria realidade, ele pretende estabelecer o vir a ser de uma escola que tenha capacidade de dar conta de suas raízes democráticas.  A escola competente no dizer de Freire é uma escola humilde, no sentido de reconhecer que todo conhecimento tem a possibilidade de ser superado.
A Constituinte Escolar é a grande ferramenta  para a construção da Democracia Participativa do Governo do Município na área da Educação. É um processo de participação popular na definição de políticas públicas e de fortalecimento do controle social sobre o município. Este movimento é uma iniciativa concreta da Secretaria de Educação, conclamando educadores, pais, estudantes, funcionários, movimentos sociais populares, Instituições de Ensino Superior e Instituições do Poder Público para que ocupem o seu lugar nas definições dos rumos da educação e da escola pública e, consequentemente, resgatem o seu lugar na história do nosso Município. Estamos construindo um grande movimento que, através de debates, estudos e socialização de experiências, oportuniza, de forma inédita, que a comunidade do Município de Jaguarão tome em mãos e analise, de forma participativa, o cotidiano da escola pública. Assim, a Constituinte Escolar, enquanto Movimento Político Pedagógico, resgate/apropriação da educação e da escola pública pela comunidade escolar e pelos setores populares, vem se consolidando.  Ampliar e qualificar a Participação popular são condições para praticar e consolidar a Democracia Participativa, na qual, ser sujeito não é apenas votar e delegar poder, mas, principalmente, participar, interferir nas definições políticas, econômicas e sociais. A Participação popular não acontece apenas através da formalidade dos mecanismos institucionais e/ou legais, como o voto (em período de eleições). Ela vai além deles, uma vez que é um processo social que possibilita às camadas populares manifestar seus anseios, interesses e necessidades, e, além disso, interferir, influenciar, participar da elaboração e da tomada de decisão, bem como controlar a implementação das políticas públicas definidas. Tratar da Participação popular é tratar, necessariamente, da construção do ser humano enquanto sujeito transformador da história.
O movimento da Constituinte Escolar começou em março de 2009, inspirado na organização da gestão da SEC/RS 1999-2002, quando a Professora Dra. Lúcia Camini foi Secretária de Educação do governo Olívio Dutra. A Professora Lúcia foi conferencista no dia 10/12/2010, quando ocorria a Conferência Municipal de Educação. O processo se dividiu em vários momentos: O 1º movimento, que tratou da eleição das coordenações por escola, desenvolvido e concluído no período de março a abril de 2009, incluindo o lançamento oficial no dia 17 de abril com a presença do grande educador Carlos Rodrigues Brandão. O  2º movimento Resgate histórico e  socialização  pública desta experiência  ocorreu no dia 24/10/2009. Percorremos todas as escolas em dezembro de 2009 reforçando a importância  do que havíamos  construído,  até então,  para a História da educação de Jaguarão, deixando  encaminhado o próximo movimento que teve seu início em março de 2010 com o  3º movimento: Resgate das Práticas Pedagógicas. Realizamos uma capacitação em março para as coordenações construírem estratégias para democratizar a participação e compreenderem o que é uma prática pedagógica, criarem as condições de apontarem experiências positivas que serviriam inclusive como referências para a educação da cidade,  e práticas que necessitavam ser pensadas e superadas. Sistematizamos o que foi apontado nas discussões organizadas pelas coordenações com os diferentes seguimentos das comunidades escolares. Retornamos as escolas, sentamos com os diferentes seguimentos, e indicamos os temas que haviam sido resgatados, dialogando com eles no sentido de ver se o que haviamos enxergado as suas indicações estava fiel nas sistematizações que fizemos. Organizamos o 1º Seminário antes de iniciar o 2º semestre: "Olhares sobre as práticas pedagógicas". Entramos mês de agosto reunindo as coordenações das escolas para que organizassem as pré-conferencias. Aconteceram sete pré-conferências: Educação Infantil: Educação do Campo, mais cinco pré-conferências onde as comunidades próximas se organizaram de forma colaborativa, vale dizer que na zona urbana nós temos sete escolas municipais de Ensino Fundamental, uma escola inserida em cada bairro.
Os 160 delegados eleitos nas pré-conferências participaram das discussões, votaram e aprovaram os princípios e diretrizes apresentados na Conferência Municipal que embasará o Plano Municipal de Educação e a consolidação do Sistema Próprio.

PRINCÍPIOS PARA A EDUCAÇÃO NA ESCOLA PÚBLICA MUNICIPAL
1-      ESCOLA COMO ESPAÇO  SOCIAL DE PROMOÇÃO HUMANA.
A escola é um espaço de encontro que todos os segmentos da comunidade escolar e local têm para discutir, encaminhar e promover ações que assegurem as condições necessárias à promoção da vida humana e onde crianças, adolescentes e jovens possam ter oportunidades educacionais de ampliação do conhecimento e da capacidade de descobrir, criar, questionar, criticar e transformar a sua própria realidade.
Ampliar a capacidade de viver, de se alegrar e de trabalhar com o outro tornando maior sua sensibilidade para encontrar sentido na realidade, nas relações e nas coisas, contribuindo para uma nova sociabilidade humana, fundada em relações sociais de colaboração, são dimensões fundamentais na prática educativa escolar. Para que a escola possa oferecer essas contribuições é preciso conhecer e respeitar a história de vida das crianças, seu conhecimento, sua sensibilidade, seus valores, produzidos na convivência cotidiana na sua comunidade.
A noção de aprender a partir do conhecimento do sujeito, a noção de ensinar a partir de palavras e temas geradores, a educação como ato de conhecimento e de promoção humana e a politicidade da educação são apenas alguns dos legados da educação popular.
A escola deve ter clareza de que a criança não é um mero recipiente no qual se despejam coisas, que ela é um sujeito que articula, a seu modo, abrangências e dimensões diferentes da vida em sociedade, que produz conhecimento, que constrói sua fala, que expressa o que pensa de acordo com seu jeito. Há que se afirmar com ênfase que toda pessoa é diferente e que é na diferença que está a originalidade, o sentido e a riqueza de ser gente.

2- ESCOLA COMO LUGAR DE ENCONTRO DAS DIFERENÇAS
Aprendemos com todos, uns com os outros, através de encontros. A certeza que temos é que o futuro irá conduzir-nos a sociedades cada vez mais heterogêneas, nas quais a cultura será o resultado do encontro de muitas culturas. A Escola traduz, na atualidade – e continuará a fazê-lo no futuro – esta potencial diversidade e a transculturalidade daí decorrente.
Aproveitar as singularidades e diferenças que todos temos uns em relação aos outros, consequência das diferentes idades, circunstâncias econômicas, sociais e culturais, origens, religiões, ideais, etc..., entendendo-as como oportunidades de potencial encontro e construção de novos patamares de pensamento e de representação do mundo, esse é o caminho a percorrer. Caminho que pode se atingir uma perspectiva de desenvolvimento humano e ambientalmente sustentável. Uma Escola que promove e humaniza a vida. A democracia funda-se no respeito pelas diferenças, são, pois, legítimas todas as leituras e representações da realidade que decorram diretamente dos nossos sistemas e das nossas convicções.
A Escola deve, por isso, contribuir para a remoção de todas as barreiras físicas, sociais e culturais que impeçam essa Liberdade de afirmação e Expressão Individual, nos planos axiológico e político. A Escola deve ser, na atualidade, um lugar de chegada e de partida. Como se fosse um largo, da forma como Manuel da Fonseca (escritor português) o entendia: “um largo que foi sempre um espaço de aprendizagem onde se aprendia quase tudo, com quase toda a gente, em quase todo o tempo e de todas as formas”.
Nesta Escola – espaço e tempo de encontro entre as diferenças humanas, de natureza biológica, social e cultural – confluem hoje aprendizagens construídas em contextos muito diversos que se entrecruzam e se enriquecem.
A Escola, tal como a Cidade, deve ser um lugar de encontro que promove a Vida, a Liberdade e a construção de uma Identidade. A diferença, a heterogeneidade, a diversidade e o contraditório são circunstâncias que abrem oportunidades de comparação e de afirmação de uma singularidade pessoal e comunitária. Aprender contribui para aquisição da capacidade de querer, poder e decidir a própria vida. A Escola deve contribuir para essa fundante Liberdade.

3- PLANEJAMENTO PARTICIPATIVO – AÇÃO
Na busca da melhoria da qualidade do ensino, a gestão da escola pública passou a receber maior atenção, ampliando suas responsabilidades. Partindo do princípio que cada escola possui uma realidade específica, necessitamos planejar a educação de forma a que se incorporem os diferentes olhares presentes no dia-a-dia da escola através da efetiva participação de pais, alunos, professores, funcionários e demais membros da comunidade nas decisões nos rumos da escola. Desta forma estaremos contribuindo para o processo de construção de uma escola verdadeiramente autônoma e democrática.

4 - EDUCAÇÃO COMO DIREITO DE TODOS
Coloca-se como centralidade a situação daqueles que, ao longo da história, tiveram esse direito negado, não conseguindo entrar nela, ou que foram dela excluídos. Estamos vivenciando um tempo que talvez seja o melhor da história do país impulsionando mudanças na educação. Um tempo em que temos condições de compreender que as questões de etnia, gênero, orientação sexual e religiosa, como elementos para que se possam encontrar soluções para a melhoria da convivência na escola, de modo a que o ambiente educacional se torne um lugar de encontro saudável, capaz de promover não só a instrução mas o desenvolvimento pleno da pessoa como cidadão e ser humano. Seu preparo para o exercício dessa cidadania e sua qualificação para o trabalho promovendo igualdade de condições para o acesso e permanência na escola, liberdade de aprender, ensinar e divulgar a cultura, o pensamento, a arte e o saber adquiridos levando em conta o pluralismo de ideias e de concepções, respeitando a liberdade e apreço à tolerância. Desse modo, torna-se indispensável lançar nosso olhar para o movimento de luta de coletivos sociais, para que possamos ter um entendimento mais amplo sobre o papel da escola na construção da cultura da diversidade. A população campesina, os povos indígenas e as comunidades quilombolas tiveram historicamente seu direito à educação negado, tanto no acesso como na permanência na escola. Esses setores da população, resguardando suas singularidades, têm em comum a premissa básica do direito a uma educação que responda às suas necessidades especiais de aprendizagem.

5–ESCOLA NÚCLEO COMUNITÁRIO DE CULTURA, ESPORTE E LAZER
 A Cultura, o lazer e a disponibilidade de espaços para atividades lúdicas e esportivas são  necessidades  básicas  e, por isso, direitos do cidadão. Os alunos podem compreender que os esportes e as demais atividades lúdicas e corporais não devem ser privilégios  apenas  dos  esportistas  ou  das pessoas  em  condições  de  pagar  por  academias  e  clubes. Dar valor a essas atividades e reivindicar o acesso a elas para todos é um  posicionamento  que pode  ser  adotado  a partir dos conhecimentos adquiridos nas aulas de Educação Física (Parâmetros Curriculares Nacionais, vol. 03 Educação Física. 2003).  O debate sobre o lazer na escola tornou-se um desafio diário. O problema justifica-se na necessidade de compreensão das abordagens e contextos em que o lazer é visto como fator oposto à produção. Se faz necessário buscar um entendimento sobre o que significa lazer para a comunidade e como essa mesma comunidade estabelece relações entre o lazer e a prática pedagógica. Precisamos reconhecer a prática de lazer na comunidade como um dos pilares do processo de politização, organização, socialização comunitária e portanto, momentos de formação e promoção do humano. É importante compreender a educação como mediadora de um contexto social e cultural determinado, que relaciona e reflete seu tempo e contexto, auxiliando a explicitação dos interesses dos grupos ou classes e do projeto de sociedade que eles explicitam e conformam, ou se tornando um dos instrumentos de sua transformação Se faz necessário também criar redes dialógicas entre a escola e a comunidade. Chegamos então as ações, diretrizes que iremos construir como forma de enraizar os princípios eleitos como fundamento de uma educação emancipatória.

DIRETRIZES PARA A EDUCAÇÃO PÚBLICA MUNICIPAL
- Construir o Sistema Municipal de Educação;
- Fortalecer os Conselhos Escolares;
- Criar e qualificar as salas de recursos;
- Opção da Pesquisa Participante como método dialógico permanente;
- Reconhecer os Funcionários de Escola como Educadores;
- Estabelecer Fórum permanente de debates sobre a relação escola-sociedade;
- Qualificar os espaços físicos (ênfase na Educação Infantil);
- Reconstrução curricular a partir da realidade contextualizada historicamente, valorizando o saber popular articulado ao saber científico;
- Processo ensino-aprendizagem embasado na relação dialógica entre a prática e a teoria;
- Participação da comunidade na construção de uma educação e escola comprometidas com o desenvolvimento social;
- Consolidação das salas de AEE com nomeação de professores concursados e formação para a Educação Especial.
- Contratação e formação de Cuidadores com o objetivo de acompanhamento e cuidado com os deficientes.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS:
Constituinte Escolar, Princípios e Diretrizes para a Educação Pública Estadual. Porto Alegre: .  Secretaria da Educação, 2000.
FREIRE, Paulo. Conscientização teoria e prática da libertação, 3 ed. São Paulo: Moraes, 1980.
FREIRE, Paulo. A Educação na Cidade. São Paulo: Cortez, 1991.
FREIRE, Paulo. Educação Como Prática da Liberdade, 25 ed.. Rio de janeiro: Paz e Terra, 2001
Conferência Municipal de Educação Jaguarão.  Jaguarão, 2010 (Acervo em DVD).
Caderno da Constituinte Escolar, Princípios e Diretrizes para a Educação. Jaguarão, 2010.